*Por Flávia Albaine
No último dia 8 de junho de 2022 a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu decisão entendendo que o rol de previsões de assistência hospitalar e ambulatorial da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é um rol taxativo e não exemplificativo. A questão versou sobre o artigo 10 da Lei 9656/98 (que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde), cujo parágrafo quarto estabelece que a amplitude das coberturas prestadas pelos planos de saúde será estabelecida por norma editada pela ANS.
Trata-se de julgamento que estava sendo ansiosamente aguardado pela comunidade como um todo, principalmente pelos grupos de pessoas com deficiência e seus familiares, e cujo resultado teve um impacto altamente negativo na vida de milhares de brasileiros.
Do ponto de vista das operadoras dos planos de saúde, argumentou-se basicamente que uma cobertura excessivamente aberta não permite um cálculo atuarial preciso de forma a analisar se o sistema possui ou não sustentabilidade do ponto de vista econômico. Do ponto de vista dos segurados, argumentou-se sobre o direito à vida e o direito à saúde, direitos esses de caráter fundamental.
A Segunda Seção do STJ, rompendo com jurisprudência já firmada em momento anterior, entendeu que o elenco previsto no rol da ANS é taxativo, ou seja, se a previsão médica necessária pelo paciente não estiver prevista no rol, a princípio o plano de saúde pode recusar o fornecimento. O Tribunal ressaltou que é possível a contratação de cobertura ampliada por parte do segurado. E também fez algumas exceções ao entendimento do rol taxativo se esgotados os procedimentos do rol e não havendo substituto terapêutico, desde que observadas as seguintes condições: a incorporação do procedimento ao rol não tenha sido expressamente indeferida pela ANS; haja comprovação da efetividade do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; haja recomendação do tratamento por órgãos técnicos renomados; que seja realizado o diálogo institucional entre o plano de saúde e as entidades técnicas na área da saúde.
STJ coloca em risco a saúde de muitas PCDs
Em que pese as exceções fixadas pelo STJ, o entendimento proferido na decisão coloca em risco o direito à saúde de inúmeras pessoas com deficiência, contrariando as normas internacionais e nacionais que regem a matéria. O artigo 25 da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (incorporada pelo Brasil com status constitucional) fala expressamente que as pessoas com deficiência têm o direito de gozar do estado de saúde mais elevado possível, inclusive no tocante aos serviços de reabilitação, prevenção, diagnóstico e intervenção precoces.
Por sua vez, os artigos 18 e seguintes da Lei Brasileira de Inclusão mencionam várias diretrizes que objetivam assegurar atenção integral à saúde das pessoas com deficiência em todos os níveis de complexidade e devem ser observadas pelos serviços de saúde públicos. Em que pese a Lei mencionar serviços de saúde públicos, através de uma interpretação teleológica da norma, é possível entender que tais diretrizes também se aplicam aos serviços de saúde privados diante da vulnerabilidade social experimentada por pessoas com deficiência, ainda vítimas de discriminações e barreiras no exercício de seus direitos fundamentais. Algumas dessas diretrizes podem ser mencionadas, tais como: serviços de habilitação e reabilitação inclusive para a manutenção de uma melhor condição de saúde e qualidade de vida; atendimento domiciliar multidisciplinar, tratamento ambulatorial e internação; atendimento psicológico (que se estende também para familiares e cuidadores); atenção sexual e reprodutiva, incluindo o direito à fertilização assistida, dentre outros. Ademais, a própria Lei veda a discriminação pelos planos de saúde contra as pessoas com deficiência.
Portanto, é possível perceber que muitas destas prestações médicas garantidas para as pessoas com deficiência tanto pela legislação internacional como pela legislação nacional estão fora do rol da ANS. E a não prestação de tais serviços viola o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (artigo 1, inciso III, Constituição Federal de 1988 – qualidade própria e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da sociedade) e o Princípio da Vedação ao Retrocesso (que alude que o Estado, após ter implementado um direito fundamental, não pode praticar um ato que vulnere tal direito sem que haja uma medida compensatória efetiva correspondente).
Importante ressaltar, ainda, que de acordo com o Código de Ética Médica, compete ao profissional da saúde habilitado indicar o tratamento médico mais adequado, com vistas a resguardar a saúde e a vida do paciente, sendo vedada a interferência de outros interesses em tal escolha, tais como interesses pecuniários, políticos, religiosos, ou de quaisquer outras ordens, do empregador, do superior hierárquico ou do financiador público ou privado de assistência à saúde.
Com todo o respeito ao STJ e aos entendimentos em sentido contrário, entendemos que tal decisão é inconvencional, inconstitucional, ilegal e violadora do direito fundamental à saúde.
Quem é Flávia Albaine?
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Privado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Mestra em Direitos Humanos e Acesso à Justiça pela Universidade Federal de Rondônia com pesquisa no tema sobre atuação estratégica da Defensoria Pública em prol da inclusão social de pessoas com deficiência. Membra da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos. Conselheira Estadual e Nacional do ONDA Autismo RO.
Colunista de Direitos Inclusivos da Revista Cenário Minas. Professora das disciplinas direitos dos idosos e direitos das pessoas com deficiência em cursos preparatórios pata ingresso na carreira da Defensoria Pública. Fundadora e coordenadora do Projeto Juntos pela Inclusão Social em prol das pessoas com deficiência e das pessoas idosas. Coautora de livros sobre os direitos das pessoas com deficiência. Palestrante. Autora de artigos acadêmicos e artigos de educação em direitos sobre os direitos das pessoas com deficiência e direitos dos idosos.