A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: O SURSIS PROCESSUAL

Ana Paula Couto – Advogada. Professora de Direito Processual Penal. Doutoranda e Mestra pela UNESA. Autora de livros jurídicos. E-mail: anapaulabmcouto@yahoo.com.br

 

Marco Couto – Juiz de Direito. Professor de Direito Processual Penal. Doutorando e Mestre pela UNESA. Autor de livros jurídicos. E-mail: mjmcouto@tjrj.jus.br

 

 

 

O legislador não quer. A doutrina e a jurisprudência aceitam. Mas por que não se admite o sursis processual nos casos de violência doméstica e familiar contra mulher?

A Lei Maria da Penha (Lei 11340/06) constitui uma evolução importante no trato da questão relacionada à violência doméstica. É claro que, mesmo antes do advento da mencionada lei, a maioria dos dispositivos legais atualmente em vigor já existia e estava à disposição dos aplicadores do Direito. As ameaças, as lesões corporais, os homicídios e muitos outros crimes que vitimavam as mulheres eram e continuam sendo previstos no nosso Código Penal e nas nossas leis extravagantes.

O que verdadeiramente mudou, com a chegada da Lei Maria da Penha, foi a forma de tratar os crimes praticados contra as mulheres. Não se pode negar que o legislador acertou na definição de violência doméstica – passando a abranger as violências física, psicológica, sexual, patrimonial e moral –, o que, sem dúvida, conferiu maior proteção às vítimas. Além disso, as medidas protetivas, previstas na Lei Maria da Penha, tornaram-se importante instrumento em defesa das mulheres.

A questão a ser enfrentada nesta coluna é específica e trata do cabimento, da conveniência e da utilidade do sursis processual nos casos relacionados à violência doméstica.

O art. 89 da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9099/95) trata do sursis processual, também conhecido como suspensão condicional do processo. Através desse instituto, cuja aplicação é restrita a hipóteses específicas, é dada uma chance ao réu de evitar o seu julgamento.

Exige-se que o réu não tenha sofrido alguma condenação criminal ou mesmo esteja respondendo a outro processo criminal. Só esses requisitos seriam capazes de afastar o sursis processual daqueles que reiteram em práticas delitivas, seja especificamente vitimando mulheres, seja praticando qualquer outro delito.

Portanto, o sursis processual apenas teria aplicação em favor daqueles que estão envolvidos em uma única ameaça ou lesão corporal, por exemplo. É claro que isso não afasta a reprovabilidade de tal ameaça ou lesão corporal, mas é preciso que pessoas com perfis diferentes tenham tratamentos diferentes.

O próprio legislador, ao prever o sursis processual, opta por tratar tais situações de maneira diferenciada. Não há, propriamente, uma razão convincente, ao menos na nossa ótica, para essa estratégia legislativa deixar de ser aplicada nos casos de violência doméstica.

Um outro ponto importante decorre do fato de o réu beneficiado com o sursis processual ser obrigado a cumprir um período de prova, ficando sujeito a determinadas condições. Em outras palavras, quando é concedido o sursis processual, o réu não é absolvido e nem o processo é extinto. Apenas fica pendente o seu julgamento. Se o réu cumprir as condições fixadas pelo juiz durante todo o período de prova, ele evitará o seu julgamento. Caso contrário, o processo terá o seu curso normal e o réu será sentenciado.

Diante da peculiaridade que envolve os casos de violência doméstica, o juiz poderia fixar, além das condições expressamente previstas em lei, condições específicas relacionadas ao caso concreto. Se a violência doméstica envolvesse, por exemplo, o marido e a sua esposa que pretendem continuar o seu relacionamento, a fixação de algumas condições específicas poderia ajudar na reconciliação do casal e na manutenção da paz na família.

O que se verifica, nos dias de hoje, é o julgamento do réu que, a rigor, em nada beneficia a família. Se o réu é absolvido rapidamente, a depender do seu grau de conscientização, ele conclui que a ameaça ou a lesão corporal não deu em nada e acaba estimulado a reincidir na mesma prática. Se o réu é condenado rapidamente, não se pode negar que a resposta penal, em regra, não atinge a aplicação de uma pena severa e isso também raramente leva o réu a alguma reflexão quanto ao erro de sua conduta.

A aplicação do sursis processual, na nossa avaliação, seria didática. Ao longo do período de prova, o réu seria necessariamente levado à reflexão, sobretudo se o juiz fixasse condições específicas para tanto. Em muitos casos, agressor e agredida desejam continuar o relacionamento. Ao menos durante o período de prova, que seria fixado de 2 a 4 anos, conforme dispõe o art. 89 da Lei dos Juizados Especiais, o réu seria monitorado e acompanhado, permitindo-se que a situação do casal se estabilizasse e voltasse à normalidade.

Convém lembrar que, observando a ótica estabelecida pela Lei Maria da Penha, a concessão do sursis processual constituiria verdadeira forma de empoderamento da mulher, na medida em que a mesma seria a principal fiscal do cumprimento das condições fixadas pelo juiz, cabendo-lhe levar ao processo a notícia de qualquer descumprimento por parte do réu.

Lembre-se que o sursis processual apenas teria aplicação nas infrações de médio potencial ofensivo, ou seja, naqueles crimes cuja pena mínima não ultrapasse o patamar de 1 ano. Qualquer análise nos números relacionados ao Juizado de Violência Doméstica revela que os crimes de ameaça e de lesão corporal constituem a maioria dos casos levados a juízo, o que permitiria que muitos réus – que nunca foram condenados criminalmente e que sequer respondem a outro processo criminal – usufruíssem o sursis processual.

É claro que tal medida despenalizadora não teria aplicação em casos graves, seja pela reiteração das práticas delitivas, seja pela gravidade em si do crime praticado. Ninguém pode achar normal a aplicação do sursis processual ao réu que ameaçou ou agrediu várias vezes a vítima, assim como ninguém pode achar normal a aplicação do sursis processual ao réu que causou lesões gravíssimas à vítima ou mesmo tentou matá-la.

Portanto, o que se sustenta nesta coluna é uma situação específica: a concessão do sursis processual nas situações de violência doméstica, no caso do réu nunca ter sido condenado e não responder a outro processo criminal, especificamente nas hipóteses de infração de médio potencial ofensivo, com a submissão do réu a um período de prova, mediante a fixação de condições específicas relacionadas às circunstâncias do caso concreto.

É isso que sustentamos.

Seria possível dizer que o art. 41 da Lei Maria da Penha apenas deve ser aplicado aos institutos que se relacionam especificamente ao Juizado Especial Criminal, quais sejam, a composição dos danos civis e a transação penal.

Seria possível dizer que o próprio art. 89 da Lei dos Juizados Especiais deixa claro que o sursis processual não é um instituto específico do Juizado Especial Criminal, tanto que aplicável às infrações de médio potencial ofensivo que estão fora da sua competência.

Seria possível dizer que o art. 41 da Lei Maria da Penha é inconstitucional porque viola o princípio da razoabilidade, impondo o julgamento do réu em situações que o seu monitoramento através do sursis processual é muito mais benéfico a todos os envolvidos na situação de violência doméstica.

Todavia, o que se espera verdadeiramente é que o tema evolua, seja através de uma alteração legislativa, seja através de uma mudança jurisprudencial, a fim de que se passe a admitir o sursis processual nos casos de violência doméstica já referidos.