A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM TEMPO DE PANDEMIA

Professores de Direito Processual Penal, Ana Paula Couto e Marco Couto, explicam como está sendo a repercussão da violência doméstica em tempo de pandemia.

A violência doméstica contra as mulheres é uma prática antiga. Lamentavelmente, a cultura brasileira muito pouco prestigia as mulheres em diversos aspectos. Até as pessoas que apresentam algum grau de responsabilidade no sentido de se posicionar de forma contrária às práticas injustas efetivadas contra as mulheres, às vezes involuntariamente, convivem com frases altamente machistas durante toda a vida. É impressionante ver pessoas de bem usando frases como “em briga de marido e mulher não se mete a colher” ou “no fundo, as mulheres gostam de apanhar”, sem fazer qualquer reflexão. Tais frases, por vezes ditas em tom de brincadeira, quando proferidas na frente de crianças, perpetuam a cultura machista que temos.

De tão imperceptíveis para alguns, foi preciso elaborar uma lei para definir todas as formas de violência doméstica contra as mulheres. O homem médio, que não tem maior proximidade com o universo jurídico, provavelmente desconhece que, à luz do art. 7º da Lei 11340/06 – conhecida como Lei Maria da Penha –, a violência doméstica contra as mulheres compreende as violências físicas, psicológicas, sexuais, patrimoniais e morais. Para muitos é difícil compreender, por exemplo, que a conduta que cause algum dano emocional e diminua a autoestima das mulheres configura perfeitamente uma violência psicológica. Alguns também desconhecem, por exemplo, que a conduta que impeça a mulher de usar qualquer método contraceptivo configura perfeitamente uma violência sexual.

Portanto, o panorama que compreende o universo dos casais é altamente suscetível às mais variadas formas de violência doméstica contra as mulheres, até porque as pessoas em geral desconhecem a sua amplitude. É importante frisar que, em tempo de pandemia, se potencializa a possibilidade de ocorrerem tais violências, justamente porque os casais têm um contato maior do que o contato que eles mantêm em tempo de normalidade.

Tal conclusão é puramente matemática. Não se pode negar que o isolamento das pessoas em suas casas, ainda que não adotado de forma radical, aproxima fisicamente os integrantes das famílias e, dentre eles, por motivos óbvios, o casal. Se o marido e a mulher não saem de casa para trabalhar ou para fazerem as suas atividades rotineiras, ambos acabam ficando mais horas juntos. Isso pode ser bom para o relacionamento, mas também pode ser péssimo. Não custa lembrar que a pandemia, por si só, gera uma natural tensão nas pessoas, o que pode acarretar um número maior de conflitos.

Convém salientar que o legislador, em certa medida, tem feito a sua parte, dando um tratamento diferenciado às mulheres. Três exemplos previstos no nosso ordenamento jurídico podem esclarecer este ponto.

O primeiro exemplo diz respeito à prisão preventiva. Em obediência ao que dispõe a Constituição Federal, o nosso Código de Processo Penal trata a prisão cautelar como medida excepcional. Isso faz sentido porque, a rigor, não havendo uma necessidade extraordinária, o réu deve aguardar em liberdade o desfecho do seu processo, até para evitar que ele fique preso desnecessariamente no curso do processo e, ao seu final, o réu seja absolvido ou mesmo condenado a uma pena que não imporá a privação de sua liberdade. Nesse aspecto, o art. 313 do Código de Processo Penal estabelece que a prisão preventiva apenas seja decretada, em regra, quando o réu responde ao processo criminal pela prática de crime cuja pena máxima prevista seja superior a quatro anos. Todavia, este patamar de quatro anos é dispensado nos casos de violência doméstica, ou seja, a prisão preventiva nestes casos pode ser decretada para crimes com pena inferior a quatro anos. É por isso que é possível decretar a prisão preventiva do réu, nos casos de violência doméstica contra as mulheres, ainda que ele responda pela prática de crimes com penas inferiores a quatro anos, como a lesão corporal ou a ameaça.

O segundo exemplo diz respeito ao acordo de não persecução penal. O chamado Pacote Anticrime – Lei 13964/19 – inseriu o art. 28-A no Código de Processo Penal, segundo o qual, cumpridos os requisitos legais, é possível que o Ministério Público faça um acordo com o indiciado, evitando o oferecimento da denúncia em juízo. Em outras palavras, é reconhecida a presença da justa causa, mas não há deflagração do processo criminal. Ao contrário, o acordo de não persecução penal busca justamente evitar que o indiciado ganhe o status de réu. Todavia, esse medida despenalizadora não é aplicável nos casos de violência doméstica contra as mulheres, por expressa determinação legal.

O terceiro exemplo diz respeito à transação penal. O art. 76 da Lei 9099/95 prevê a aplicação da referida medida despenalizadora no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, a qual consiste em um acordo entre o Ministério Público e o autor do fato. Celebrado o acordo, cabe ao autor do fato cumprir uma medida não privativa de liberdade para evitar o oferecimento da denúncia em juízo. Portanto, o autor do fato sequer ganha o status de réu. Todavia, o art. 41 da Lei 11340/06, de forma expressa, afasta a aplicação da Lei 9099/95 e, por consequência, afasta a transação penal nos casos de violência doméstica contra as mulheres.

Os exemplos acima evidenciam o propósito do legislador de conferir uma maior proteção às mulheres. Isso porque os agressores, diante da impossibilidade de serem presos cautelarmente ou diante da possibilidade de serem beneficiados com medidas despenalizadoras como o acordo de não persecução penal e a transação penal, poderiam ficar estimulados a continuar praticando violência doméstica contra as mulheres.

Mas a questão que nos parece importante é a seguinte: embora o legislador esteja fazendo a sua parte, a população em geral tem contribuído para a diminuição dos casos de violência doméstica contra as mulheres?

Desde o advento da Lei 11340/06 – e já se vão quatorze anos –, não se vê claramente uma mudança em nossa cultura no sentido de conferir maior prestígio às mulheres. É certo que muitas mulheres passaram a procurar as delegacias de polícia, sobretudo aquelas delegacias especializadas no atendimento às mulheres – DEAM –, o que vem gerando um aumento no número de processos deflagrados nos Juizados de Violência Doméstica. Mas não se pode afirmar, propriamente, uma mudança na cultura no que se refere ao tratamento dado às mulheres. Quando muito, é possível afirmar uma mudança cultural apenas no sentido de que as mulheres têm adotado as providências legais que estão ao seu dispor. Embora isso seja um bom sinal – já houve tempo em que as mulheres sofriam silentes –, o ideal seria que os maridos se conscientizassem que o seu papel na relação não inclui a prática de qualquer violência doméstica contra as mulheres.

Neste tempo de pandemia, esta conscientização deve existir a todo momento. O stress causado pelas circunstâncias atuais não constitui qualquer salvo-conduto aos maridos, até porque também as mulheres estão tendo as suas vidas abaladas pelo isolamento e pela consequente mudança das suas rotinas. O que se espera não é muito, mas apenas que as relações sejam discutidas com urbanidade, a ponto de os problemas serem resolvidos ou minimizados sem qualquer violência doméstica contra as mulheres. Aliás, uma relação cujos problemas são resolvidos à base de violência doméstica contra as mulheres, na verdade, não é uma relação amorosa. Esta relação pode ser adjetivada de muitas formas, menos de uma relação amorosa. O amor – que deve reger as relações conjugais – não confere espaço para a violência doméstica contra as mulheres.

Por:
Dra. Ana Paula Couto – Advogada. Professora de Direito Processual Penal. Doutoranda e Mestra pela UNESA. Autora de livros jurídicos.
@issoposto

Dr. Marco Couto – Juiz de Direito. Professor de Direito Processual Penal. Doutorando e Mestre pela UNESA. Autor de livros jurídicos.
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