A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: O NECESSÁRIO DISTANCIAMENTO ENTRE O AGRESSOR E A VÍTIMA

Desde sempre, as relações afetivas apresentam situações complexas, as quais variam desde a completa vulnerabilidade emocional até o completo descontrole das pessoas que, por vezes, cometem crimes que nunca imaginaram cometer. No campo dos sentimentos, não é raro as pessoas se transformarem completamente, muitas vezes contrariando princípios morais que as acompanharam durante toda a vida.

Atuando na área criminal há muitos anos, acompanhamos situações verdadeiramente dramáticas, nas quais ocorreram tragédias que podiam ter sido evitadas, caso os envolvidos tivessem sido corretamente orientados ou caso os envolvidos tivessem adotado alguma providência efetiva no momento em que os problemas começaram.

Quase sempre, há uma progressão nos comportamentos que vai desde uma crise de ciúme injustificada até um descontrole verbal com xingamentos, sendo certo que uma agressão leve como um pequeno empurrão ou um tapa, por vezes, rompe uma barreira moral importante e consiste na abertura de uma porta que leva às agressões físicas graves e até mesmo ao homicídio.

Dificilmente – e a nossa vivência no dia a dia forense comprova isso –, um marido tranquilo, que sempre respeitou a sua mulher, acorda em determinado dia e resolve matá-la. Em geral, a dinâmica não é essa.

Normalmente, as coisas evoluem vagarosamente, com a pessoa alterando o seu comportamento aos poucos, com a concordância tácita da outra pessoa envolvida na relação, até que ocorre a prática criminosa.

O curioso é que o mundo atual apresenta a todos tantas informações, sobretudo através das mídias sociais, que seria razoável esperar que as pessoas tivessem esse nível de percepção em seus relacionamentos. O problema é que a informação disponível a todos nem sempre corresponde a um verdadeiro conhecimento.

Então, as pessoas entendem o que dizem as estatísticas relativas à violência doméstica, mas não ficam mais atentas em seus relacionamentos. Em outras palavras, as pessoas entendem, mas não compreendem, não absorvem, não conferem um sentido prático às informações que obtiveram.

A Lei Maria da Penha apresenta mecanismos interessantes que podem quebrar essa dinâmica de progressão indesejável, funcionando como um freio à pessoa que, vulnerável emocionalmente, sequer percebe o enredo no qual está envolvida.

Nessa medida, o art. 22, III, a, da Lei 11340/06, prevê a seguinte medida protetiva: proibição de determinadas condutas, entre as quais a aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor.
Na nossa opinião, trata-se de importante mecanismo legal sob alguns aspectos. A questão que parece mais óbvia se refere ao fato de o agressor efetivamente não ter contato com a vítima e, por isso, não ter oportunidade de agredi-la ou mesmo praticar alguma conduta mais grave.

É possível sustentar que a simples decisão judicial nesse sentido não impede o agressor de desrespeitá-la, ir ao encontro da vítima e novamente agredi-la. De fato, apenas a decretação da prisão do agressor seria, em tese, capaz de garantir que isso não ocorra. Mas é preciso perceber que, em muitos casos, a pessoa envolvida não é propriamente alguém que mereça ficar segregado em um estabelecimento criminal, tendo contato direto com integrantes de organizações criminosas, por exemplo.

Há uma certa didática na aplicação da medida protetiva prevista no art. 22, III, a, da Lei Maria da Penha, a qual permite que as pessoas vejam com outros olhos a situação na qual estão envolvidas. Um pai de família que vem perdendo o controle sobre os seus atos é levado à reflexão quando passa a não poder mais se aproximar de sua mulher e de seus filhos. Acende-se um sinal amarelo nos integrantes da família quando percebem que o convívio do casal foi obstado por uma decisão judicial. As pessoas próximas do casal, os amigos mais chegados que desconheciam o problema e os seus vizinhos, por exemplo, passam a ter ciência da questão que – embora grave – evoluía silenciosamente.

Muitos não percebem a importância disso. Colocar luz em tal situação delicada é o primeiro passo no caminho da sua solução, seja com a reconciliação do casal, seja com o rompimento da relação de uma forma mais civilizada, evitando-se práticas criminosas de maior gravidade.

Certamente, há um desgaste moral das pessoas envolvidas quando é proferida uma decisão judicial determinando que o marido não se aproxime da mulher. Não há dúvida quanto a isso. Mas o desgaste é muito maior quando não se adota qualquer medida e as coisas vão evoluindo até que, em determinado momento, já não há mais nada a ser feito, seja porque um dos envolvidos cometeu um crime grave e ficará preso por muito tempo, seja porque um dos envolvidos sofreu um crime grave e perdeu a sua vida.

Antes da adoção de qualquer providência, já existe o desgaste moral dos envolvidos. Antes da fixação de alguma medida protetiva, já existe o problema. É um erro inverter essa lógica e pensar que o problema surge porque a mulher procurou a ajuda da Lei Maria da Penha. A situação é inversa. A Lei Maria da Penha é utilizada diante de problema que já existe – e não o contrário. Na nossa ótica, o pior panorama – sem qualquer dúvida – é a omissão da vítima, justamente porque pode levar a um caminho sem volta.

Por:
Dra. Ana Paula Couto – Advogada. Professora de Direito Processual Penal. Doutoranda e Mestra pela UNESA. Autora de livros jurídicos.
@issoposto

Dr. Marco Couto – Juiz de Direito. Professor de Direito Processual Penal. Doutorando e Mestre pela UNESA. Autor de livros jurídicos.
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